Pela primeira vez na história a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu salvo-conduto para cultivo de cannabis com fins medicinais, permitindo o cultivo da planta e a extração do óleo para uso próprio, sob prescrição médica, como forma de tratamento de estresse pós-traumático, fobias sociais e ansiedade.
Ao julgar dois recursos sobre o tema, um de relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz (em segredo de Justiça) e o outro do ministro Sebastião Reis Júnior, o colegiado concluiu que a produção artesanal do óleo com fins terapêuticos não representa risco de lesão à saúde pública ou a qualquer outro bem jurídico protegido pela legislação antidrogas.
A decisão autoriza que a conduta não seja enquadrada como crime e que o grupo não sofra responsabilização pelo Poder Público. O relator, ministro Sebastião Reis Júnior, que teve voto aprovado por unanimidade, considerou que “o cultivo da planta psicotrópica para extração do princípio ativo é conduta típica apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade” da plantação.
O julgamento da Sexta Turma vale para os casos específicos dos três recorrentes. No entanto, apesar de o entendimento não ser vinculante, ele pode orientar decisões em processos em instâncias inferiores que discutem o mesmo tema.
“Simplesmente taxar de maldita uma planta porque há um preconceito com ela, sem um cuidado maior em se verificar os benefícios que seu uso pode trazer, é de uma irresponsabilidade total”, ressaltou o ministro Sebastião Reis.
Na sessão, o subprocurador-geral da República José Elaeres Marques afirmou que a conduta de cultivar a cannabis para pacientes com doenças graves não pode ser considerada crime, uma vez que incide a excludente de ilicitude conhecida como estado de necessidade.
“Não obstante a possibilidade de importar e conseguir o produto via associações, o preço ainda se revela fator determinante e impeditivo para a continuidade do tratamento em vários casos. Em razão disso, diversas famílias, em busca de uma alternativa viável, têm trilhado o caminho do Judiciário, postulando por meio de habeas corpus salvo conduto para cultivar e extrair em casa o extrato medicinal de cannabis sem o risco de serem presas e frequentando também cursos de cultivo e oficinas de extração promovidos pelas associações”.
Segundo o relator do caso analisou em seu voto, o preço de compra de medicamentos à base de cannabis é uma barreira no acesso à saúde e ao tratamento. Ele também deixou claro que não se discutiu na ação a licença para plantio da maconha, mas, sim, se haverá a persecução penal nos casos de produção caseira de óleo de cannabis por pacientes.
“O ponto em discussão é a aparente contradição entre a norma penal incriminadora e a omissão do Estado Brasileiro em regulamentar o plantio, a cultura e a colheita de vegetais, substratos, dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, especificamente a maconha e o cannabidiol”, completou.
Os casos julgados pela turma dizem respeito a três pessoas que já usam o canabidiol – uma para transtorno de ansiedade e insônia; outra para sequelas do tratamento de câncer, e outra para insônia, ansiedade generalizada e outras enfermidades – e têm autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importar a substância. No entanto, elas alegaram dificuldade para continuar o tratamento, em razão do alto custo da importação.
Em um dos casos, o Ministério Público Federal recorreu ao STJ após o Tribunal Regional Federal da 3ª Região dar provimento a recurso e conceder habeas corpus preventivo para permitir o plantio da maconha e a produção artesanal do óleo. O órgão de acusação alegou, entre outros pontos, que o habeas corpus não seria a via processual adequada para esse tipo de pedido, pois a falta de regulamentação de tais atividades seria uma questão eminentemente administrativa.
No recurso, o Ministério Público argumentou que o pedido dos pacientes exigiria a produção de provas – que é vedada em habeas corpus –, inclusive a realização de perícia médica.
Segundo Schietti, a necessidade de produção de provas foi afastada no caso, tendo em vista que os pacientes apresentaram provas pré-constituídas de suas alegações, as quais foram consideradas suficientes pelo tribunal de segunda instância – como o fato de que estavam autorizados anteriormente pela Anvisa para importar medicamento com base em extrato de canabidiol para tratar doenças comprovadas por laudos médicos.
Rogerio Schietti analisou que a conduta para a qual se pediu o salvo-conduto não é penalmente típica, “seja por não estar imbuída do necessário dolo de preparar substâncias entorpecentes com as plantas cultivadas (nem para consumo pessoal nem para entrega a terceiros), seja por não vulnerar, sequer de forma potencial, o bem jurídico tutelado pelas normas incriminadoras da Lei de Drogas (saúde pública)”.
Ao invés de atentar contra a saúde pública, afirmou o ministro, na verdade, a intenção desse cultivo é promovê-la, a partir da extração de produtos medicamentosos.
“Ainda que o plantio de Cannabis para fins medicinais (e a prévia importação de sementes) possa se adequar formalmente aos tipos penais previstos nos artigos 28, parágrafo 1º, e 33, parágrafo 1º, II, da Lei de Drogas, ou mesmo no artigo 334-A do Código Penal (contrabando) – o que justifica o cabimento de habeas corpus, diante do risco potencial de responsabilização criminal dos pacientes –, não há, sob os aspectos subjetivo e material, tipicidade na conduta, tanto por falta de dolo quanto à extração de substâncias entorpecentes a partir da referida planta, como por absoluta falta de lesividade à saúde pública ou a qualquer outro bem jurídico protegido em nosso ordenamento jurídico”, concluiu.
Em complemento, Sebastião Reis Júnior ponderou que a tipificação penal do cultivo de planta psicotrópica está relacionada à sua finalidade. “A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco a saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade aqui é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina”.
A vitória no STJ contou com uma articulação nacional da Rede Reforma com advogados da causa.
Com informações do STJ