Como é ser mãe, mulher e maconheira numa sociedade como a brasileira? Maíra Castanheiro, escritora, historiadora e professora sabe muito bem, na pele e no corpo, como é ser uma ‘mãeconheira’.
Autora do livro “Diário de uma Mãeconheira”, a pesquisadora e ativista é a porta-voz da campanha “As Marias Proibidas” para o dia das mães. A ação, em colaboração com a Bem Bolado Brasil, traz o debate de temáticas como a maternidade, racismo e drogas.
Nós conversamos com ela para conhecer um pouco mais sobre sua vida e os desafios encontrados, e que ainda enfrenta, em nossa sociedade. Ela, após escrever o livro “Diário de uma Mãeconheira”, não conseguiu mais dar aula e perdeu a guarda da filha, que luta desde abril de 2019 para regularizar.
“Quanto mais problema foi criando, maior a necessidade de se falar, e sinceramente, é muito orgânico, natural, quando me dei conta eu já estava sendo a Mãeconheira. Ativista.”
Weederia – Quem é Maíra Castanheiro?
Maíra Castanheiro – Sou Maíra Castanheiro, baioca, venho da melhor mistura deste Brasil: Bahia com o Rio de Janeiro. Sou historiadora, professora, tradutora, mãe, escritora. Mas, antes de tudo sou escritora. Sou viciada em escrever, e como viciada tento muito evitar a escrever, porque sei que, quando eu começo eu só acabo quando termina.
Já fui atriz, garçonete, babá entre outras coisas. Em todos os espaços que já ocupei e ocupo: escolas, universidades, casa, casamento, maternidade, eu fui/sou uma ativista nata. E nas redes sociais não sou diferente: sou ativista, mãe, escritora, mulher.
W – Como é ser mãe no Brasil?
MC – Pesa 420 toneladas! Mãe é mar e é uma onda de 4k sob nossos corpos. O Brasil, assim como o mundo todo, precisa ter políticas públicas para as mães. As mães precisam ser remuneradas pelo trabalho de criar e mover o mundo. Ser mãe no Brasil é escolher entre ser uma mãe que pratica criação com apego, mãe orgânica integral etc. e tal, ou uma mulher livre empoderada. Os dois não dá. E nos dois casos a gente sofre, a gente sente culpa, é uma violência tremenda, para as mães, mas também para toda a sociedade.
W – Como é ser mãeconheira? Qual foi o papel da cannabis em sua vida após sua volta ao Brasil e separação? Já fazia consumo anteriormente?
MC – Experimentei maconha aos 18 anos. Aos 22 anos me tornei maconheira. Então quando fiquei grávida, em 2012, como eu era muitoooooo maconheira, eu era capaz de fumar 50g de uma natural em um dia, logo essa questão veio à tona. Já não era mais meu corpo, minhas regras. Então, pesquisei, diminui muitooooo a quantidade e o ritmo. Isso no México, ainda era ilegal, mas lá era de boa qualidade. Só natural. Aí, em 2015, voltei pro Brasil e me separei. Foi e tem sido ainda hoje a separação. Porque eu nunca pensei que o fato de eu me assumir como mãeconheira, escrever o diário, fosse me prejudicar a tal ponto de eu não conseguir mais dar aula ou perder a guarda da minha filha, estou desde abril de 2019 pagando advogados para regularizar a guarda.
Mas, eu nunca pensei em adotar uma personagem, um pseudônimo, ou não falar mais sobre. Quanto mais problema foi criando, maior a necessidade de se falar, e sinceramente, é muito orgânico, natural, quando me dei conta eu já estava sendo a Mãeconheira. Ativista. Escritora.
Eu não sei o que é ficar sem maconha. Eu uso diariamente. Faz parte do meu ritual e quero chegar a um dia que não precise justificar que eu fumo maconha todo dia como alguém que toma seu café, saca? Acho louco isso também, e daí a gente precisa criar argumentos místicos, medicinais, políticos, criativos, psicológicos, o que for, para justificar porque você fuma um beck todo dia, e os argumentos até podem ser verdadeiros, mas por que a gente precisa se justificar?
W – Maíra, qual foi o papel que o diário teve em sua vida? Porque resolveu começar a escrever?
MC – Na real, desde que aprendi a escrever, que escrevo diários, e como sempre viajei muito e me mudei de muitas cidades já escrevia cartas. Quando criança brincava de escrever livros. Sempre quis ser escritora. Na faculdade de história eu exerci muito a escrita também, apesar de acadêmica, eu sempre trazia uma pegada literária para minha escrita, o que por vezes me rendiam conflitos com os professores.
Eu já escrevia no facebook, textos, reflexões, etc. E sempre houve uma boa resposta do público. Então, em 2015 eu resolvi fazer um diário público. Por que? Porque eu sempre quis escrever um livro, romance, ainda quero, mas eu nunca tinha tempo, sempre ocupada em funções domésticas, em trabalhos para pagar contas e funções maternas e estudos. Porque eu tô sempre estudando algo.
Então eu sentia a necessidade de exercer minha escrita, porque como quero ser uma grande escritora, escrever é prática. Daí, o diário de uma mãeconheira nasceu com este objetivo mesmo: escrita de si, escrita criativa curativa. E ainda é. Atualmente estou escrevendo três livros mais o diário. Porque o diário, eu nunca vou deixar de escrever, faz parte do meu processo, porque como eu disse, é escrita de si, escrita criativa curativa. E a gente evolui junto. É muito louco. Porque não é uma escrita trabalhada, como um ensaio, um conto.
O que eu escrevo no diário sai de uma vez, um desabafo. Eu não reviso. No máximo dou uma lida em voz alta antes de publicar. Mas, por mais que eu não goste, eu publico. Porque faz parte do exercício da escrita de si escrita criativa curativa: encarar a sombra, a vulnerabilidade, o constrangimento. E o ato de publicar e a resposta do público quase que imediato, dá outro sentido também. Afinal, o pessoal é político, ainda mais se tratando de mulher, mãe, falando abertamente de sexo e drogas.
W- Com o crescimento do alcance de seus textos, teve problemas no trabalho?
MC – Sim. O diário nasceu em 2015 no facebook. Em 2017 fui demitida de uma escola alternativa por conta da repercussão dos meus textos. Eu nunca usei e ou falei de meu trabalho como escritora em sala de aula. Mas, eu era uma professora muito massa e minhas aulas eram muito diferentes. Então, os alunos iam me caçar na internet, me achavam, adoravam, e isso viralizava nas escolas, entre os pais dos alunos. Em 2018, em Florianópolis, 3 escolas estaduais me denunciaram na secretaria de educação de Santa Catarina, mas não deu em nada. Porém, foi muito chato, constrangedor e humilhante, as reuniões com direção e famílias das escolas por conta do meu blog do facebook. Em 2019, o pai da minha filha conseguiu a guarda provisória, anexando no processo, prints dos textos do diário de uma mãeconheira, eu estava desempregada, e daí uma escola particular para me contratar, assinar carteira, colocou como condição eu excluir o blog, o facebook. E excluí. Foi foda pra mim, porque eu tava com um público já bem legal saca?
Comecei a trabalhar nesta escola e comecei a pagar advogadas para regularizar a guarda. Tinha um instagram fechado, conta pessoal. Ainda em 2019, lancei meu primeiro livro, independente, Para Maria Alice. Um livro de cartas para minha filha. Em 2020 veio a pandemia e fui demitida. Em 2021, resolvi abrir o instagram e fechei contrato com a Editora Moluscomix e lançamos, através de financiamento coletivo, o ‘Diário de uma Mãeconheira’.
Mas, até hoje, 07 de maio de 2022, não consigo escola para dar aula (somente via concurso) e ainda estou pagando advogados para regularizar a guarda da minha filha.
W – O consumidor de cannabis ainda é mal visto pela sociedade. Você teve medo de se expor? Chegou a receber mensagens agressivas?
MC – Nunca tive medo. Não tenho. Na real, eu recebo poucas mensagens agressivas. Recebo muitas mensagens de mulheres e mães que se identificam muito com o que eu escrevo, e muitas, para não se comprometerem, não me seguem, não curtem, não compartilham, mas trocam muita ideia comigo no direct, no whats.
Nós, maconheiras, somos muitas, mas nem todas têm condições e disposição, por várias razões, de se expor e pautar este debate. Porque somos constantemente ameaçadas e é real, muitas de nós perdemos a guarda, somos limitadas, então eu entendo quando uma mãeconheira não se expõe. Mas, também entendo o quão difícil, pesado e solitário também é pautar este debate.
W – Por outro lado, a comunidade canábica possui uma certa união. Recebeu mensagens de apoio e de outras mães que se identificavam com sua história?
MC – Muita. Na real, nas redes sociais, onde eu mais encontro espaço para falar é na comunidade canábica. Eu nunca fui aceita nas comunidades maternas. O fato de eu falar de drogas e não morar com a filha, pesa. Na comunidade canábica eu conheço muitas mãeconheiras e rola muitas trocas. Muitas pedem minha ajuda e o que está ao meu alcance eu faço. Eu sempre usei minhas redes também como rede de apoio entre nós, mãeconheiras. Também como espaços de denúncias. Os meus textos, são pontes que nos conectam e nos fortalecem. Eu tenho a minha Palavra como Missão.
W – Como surgiu a ideia do livro? E qual o papel do livro da sua vida?
MC – Então, na real, o diário era para ser o último livro da história, né? Tipo, eu quando famosa, aí publicariam meu diário. Risos. Porque eu queria começar com livros de contos, romances. Mas, a escrita literária, ficcional, me exige muito tempo, aquela coisa que Virginia Woolf fala, Um teto todo seu.
Então, em 2019 que eu contei toda aquela bad: excluí rede social para trabalhar, perder a guarda da filha, enfim, eu me sentia muito fracassada e frustrada. Eu só queria/quero ser mãe, professora e escritora. E a saudade da minha filha pesa todo dia como uma tonelada. Então resolvi juntar as cartas que escrevia para ela desde 2016, e fazer um livro.
Aí depois disso, resolvi fazer o diário. Eu já tinha muita coisa escrita. E olhei para aquilo e disse: este é meu romance possível. O romance beat que eu sempre quis escrever. E estes dois livros me tornam um pouco mais livres. Não é um trocadilho infame.
Agora, estou muito focada num livro de conto, que se chama: homens. Uma resposta ao livro Mulheres, de Bukowski. Estou com um livro de poesia, na real, um rascunho para uma epopeia, porque ele é uma narrativa bem prosa poética, dividido em dois tombos: tombo I e tombo II. Cada tombo é inspirado numa história que vivi com um carinha do Tinder, me apaixonei e me fudi. Nunca pensei que fosse fazer um livro de poesia na vida, mas estes dois tombos me trouxeram versos para os verbos conjugados no presente. O tal romance, vai demorar, mas virá um dia. Também estou escrevendo um livro de ensaio: Tornar-se mãeconheira e as Marias Proibidas.
Todos meus livros, o diário, ensaio, poesia, contos, têm um papel muito importante na minha vida, para meu autoconhecimento e autonomia. E como eu acredito, toda arte é política. Até numa poesia ou num conto, eu sou política.
W – Certa vez você escreveu isso: “Dificilmente uma mulher mãe que fala abertamente sobre sexo e drogas é aceita, a maioria sofre preconceito e discriminação, é vista como incapaz ou indigna de ser mãe. Então, espero que o livro possa contribuir para este debate: que uma mulher mãe também pode falar sobre esses assuntos, que ela também trepa e usa drogas. E que isso não a faz menos mãe”. Com o livro, você recebeu contato de outras mães que se identificavam com sua história? Como foi a receptividade?
MC- Todos os dias chegam mães contando suas histórias no meu direct. É incrível e eu me emociono muito. Ainda está se reverberando muito e creio que ainda vai se reverberar muito mais, porque a cada dia que passa, chega em mais gente. Ainda sofro as dificuldades de driblar os algoritmos das redes sociais, recentemente minha conta com 10,5k caiu, muitas vezes os anúncios são rejeitados, enfim, não é fácil sair da bolha, pautar o tema na grande mídia então, dificílimo.
W – Como você vê a situação da cannabis no Brasil? Hoje você já tem atuações ligadas à marcas do universo da cannabis, como esta ação com a Bem Bolado. Como você vê esta evolução?
MC – Percebo que o debate está avançando e que há marcas que estão atentas. Que estão entendendo que a luta pela legalização da maconha não é só pelo nosso direito de fumar, vai muito além disso. As redes sociais ajudaram muito nisso, no sentido de que muitos ativistas e influencers quando pautam o debate e têm alcance, acabam educando as marcas. Que precisam ter um compromisso social, afinal, se a gente quer de fato uma sociedade melhor, mais justo, etc. e tal, a gente tem que bolar bem nossas idéias e ações. Acredito muito na micropolítica e quando as marcas além de trazerem conteúdos bons para as redes sociais, investem em ações políticas culturais, elas fortalecem e isso é comprometimento social, distribuição de renda.
Acredito que ainda temos um longo caminho pela frente, nem todas as marcas têm olho de tandera: visão além do alcance, e um entendimento da importância e urgência de apoiar ações afirmativas políticas culturais pelo fim da guerra às drogas.
W – E com Maria Alice, como é conversar sobre cannabis com sua filha? Quais dicas você pode dar para mãeconheiras?
MC – Sempre foi muito tranquila. Eu sempre disse a ela a verdade: é uma planta que é proibida e sua proibição é baseada em fatos raciais, sobretudo. Nunca fumei escondido, mas óbvio, que até hoje, ela já tem 9 anos, eu não fumo com ela muito próximo a mim por conta da fumaça. Ela também sabe que é meu momento de fumar, então nessa hora cada uma com sua onda.
Eu sempre digo para as mãeconheiras que ajam com naturalidade e verdade. Porque nossas posturas, ações, educam mais que nossas palavras, e são também nossas ações que criam laços de confiança e respeito. E é fundamental, a gente criar de verdade laços de confiança e respeito entre os nossos.
A campanha “As Marias Proibidas” para o dia das mães apresenta conteúdos informativos e educativos sobre os temas, além de trazer histórias reais de “marias proibidas”, que são as mães que tiveram suas maternidades limitadas e ou ameaçadas por serem usuárias da cannabis e outros.
Dividida em 5 posts, a ação fala sobre o que é ser uma mãeconheira, como isso acontece, quem são as “marias proibidas”, e a relação entre maternidade, drogas e racismo. Ao final, a campanha ainda realizará um especial dia das mães, com indicações de livros escritos por mãeconheiras e um manifesto criado por elas.
Os conteúdos estarão disponíveis no blog e redes sociais da Bem Bolado Brasil, marca referência na comercialização de sedas e itens de tabacaria, que visa debater temas alinhados às estratégias antiproibicionistas e as diversas vivências de seu nicho.
Confira o primeiro post no site da Bem Bolado