Desde 2016 o debate sobre o consumo de maconha ganhou novo status nos tribunais do Brasil. A planta, que até então chegava às varas criminais sob a qualificação de droga e como justificativa para o encarceramento de cidadãos, passou a ser invocada como remédio e reconhecida como direito humano. Caracterizada portanto como medicamento, quem deveria ser a autoridade competente para autorizar o uso legalizado da cannabis: o médico ou o juiz?

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A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou em 2014 a importação de canabidiol para pacientes. Isso permitiu que advogados pudessem desenvolver teses mais robustas e requerer ao Judiciário o direito ao cultivo individual da maconha para fins medicinais, pois a agência regulatória passara a admitir o uso terapêutico de produtos à base da erva. Dois anos depois sobreviria o primeiro habeas corpus para o plantio doméstico no país. De lá pra cá já são mais de uma centena de sentenças favoráveis, e subindo.

Nesse cenário, a palavra do médico se reveste de soberania e direciona a decisão de muitos magistrados, que reconhecem a especialização profissional daquela classe para decidir sobre a terapia necessária ao paciente. Trocando em miúdos, esses juízes admitem que quem entende do riscado é o doutor de consultório, e pragmaticamente sancionam na sentença a prescrição do clínico. Tal medida parece adequada e lógica. Então por que essa autoridade não é dada ao médico? Não por acaso.

Já imbuídos do espírito moralista de libertar o mundo das drogas, os Estados Unidos editaram uma lei federal que regulamentava e tributava a produção, importação e distribuição de opiáceos e  derivados da coca. Noutras palavras, proibia esses produtos. A lei foi proposta pelo congressista de Nova York, Francis Burton Harrison, e aprovada em 17 de dezembro de 1914, tendo recebido o epíteto de Harrison Act. A indústria farmacêutica norte-americana, contudo, fez lobby pesado no Parlamento e conseguiu alterar a recente norma, conseguindo adaptá-la aos seus interesses.

Com as alterações, o condão de autorizar o uso de drogas foi dado aos médicos, que passaram a  experimentar um poder que até então ignoravam. Importante lembrar que nessa época a maconha sequer era considerada entorpecente nos EUA, havendo registros de que em alguns locais crescia na beira da estrada como erva daninha, sem que ninguém idealizasse fumar.

A supremacia da classe médica, entretanto, logo se viu ameaçada pela política proibicionista. Com efeito, a redação do Harrison Act, que é a primeira experiência no tratamento das drogas como questão médica, dizia que os prescritores “prescreveriam de boa fé” e “somente dentro dos objetivos de sua prática profissional”, expressões com sentido amplo, vago e subjetivo, combinação deletéria para a segurança jurídica.

E a insegurança tomou conta de médicos e pacientes. Na inteligência dos fiscais da polícia, a única atuação adequada à prática médica era a que proibia o uso de drogas ou permitia dosagem mínima e por pouco tempo até o enfermo atingir a abstinência plena. A violação da lei, fosse ela real e objetiva ou mera conjectura subjetiva do repressor, levou o aparato policial e prender médicos e fechar clínicas em quase todos os EUA. Nos doze primeiros anos de vigência do Harrison Act, 25 mil médicos foram presos sob acusação de comércio ilegal de drogas, com três mil condenações e milhares de licenças profissionais revogadas.

Aliada a isso, a propaganda proibicionista feita pela imprensa, por associações conservadoras e pelo próprio governo estadunidense criava um ambiente moralista que pressionava sobremaneira a classe médica. Os jornais noticiavam cotidianamente prisões de “médicos-traficantes”, apontando-os como responsáveis pelo problema da toxicomania. Não à toa, pouco depois quase já não mais havia profissionais dispostos a prescrever drogas controladas. Pelo contrário. Entrou em cena a figura do médico moralista, higienista e proibicionista, curiosamente a mesma posição das figuras mais poderosas do país, que ocupavam os principais assentos no governo dos EUA.

Como consequência, a autoridade para permitir o consumo de substâncias psicotrópicas passou a ser do Judiciário, que no sistema republicano tem a palavra final em demandas dessa espécie. Noutros termos, significa que foi dado ao juiz o poder de decidir sobre tratamentos médicos. Em senso contrário, é o mesmo que um médico decidir sobre prescrição de prazo processual ou pedido de usucapião. Parece absurdo, e é.

Mas medidas irracionais têm sequelas e certos magistrados conservadores, fechando os olhos ao problema de saúde a eles exposto, exibem um contorcionismo argumentativo risível, deprimente e aviltante para proibir o acesso do paciente ao medicamento de que necessita. Pode-se dizer com firmeza que aquele julgador que denega o faz por puro preconceito, por ter enraizado dentro de si que maconha é droga de vagabundo, provavelmente como sempre ouviu, aprendeu e cristalizou.

À vista disso, surgem diversos disparates em decisões judiciais que negam autorização, por exemplo, para o cultivo individual de maconha. Um habeas corpus com essa finalidade, adequadamente redigido por profissional especializado, apresenta ao magistrado uma miríade de fundamentos fáticos, jurídicos, políticos, médicos, científicos e empíricos que tornam uma eventual sentença desfavorável muito difícil de se sustentar, já que a justiça está ao lado do paciente, sendo a saúde um direito constitucional.

Dessa forma, diante do pedido de um cidadão pagador de impostos que clama por poder cultivar o próprio remédio em segurança, esses espíritos reacionários dos tribunais soltam despautérios do tipo:

“Não me alinho com os que defendem [a cannabis]”, ensimesmou-se a Juíza Federal.

“Os rígidos controles de produção farmacêutica e fitoterápica estabelecidos pela ANVISA são norteados, conforme exaustivamente ressaltado, pelo bem-estar do todo social, que não pode ser relegado a segundo plano em prol de satisfações pessoais”, generalizou a Procuradora da República.

“Cultivou por sua conta e risco”, debochou o Juiz de Direito.

“[Os documentos médicos devem ser] submetidos ao regramento administrativo supracitado, sendo defeso a este Juízo decidir sobre procedimentos adotados pela ANVISA, órgão técnico competente para análise da questão”, esquivou-se o Juiz Federal.

Apesar disso e felizmente, magistrados com mentalidade retrógrada parecem ser a minoria, já que grande parte dos requerimentos para plantio tem sido autorizada. Mas para o paciente que precisa se submeter ao cultivo clandestino, ficar à mercê dessa divergência de entendimentos é brincar de roleta russa. Em algum momento a tragédia vem.

Nesse caso, não seria mais adequado e produtivo passar a decisão para as mãos dos médicos e dar a eles autonomia?

Pergunte ao meu cliente que, em consulta com uma médica autodenominada canábica, ouviu da dita profissional de saúde que ela não receita tampouco aconselha o uso de óleo integral de maconha nem nenhum outro que não seja produzido por uma determinada empresa norte-americana.

Enquanto a caixa registradora tilinta com o jabá, o acesso à cannabis como direito pleno do paciente fica a ver navios diante da voracidade e ganância do mercado.

A luta pelo acesso total e descriminalizado à maconha passa necessariamente por informação de qualidade, educação e boa vontade. No contexto atual, em que as vias começam a ser traçadas através do Executivo e do Judiciário, com a formação de um incipiente mercado canábico nacional, cabe a cada um dos atores dedicar-se de forma persuasiva e profissional, abrindo mão de oportunismos efêmeros ou convicções ultrapassadas em benefício da sociedade.

Ainda há um caminho longo e árduo pela frente até o acesso pleno e democrático à maconha. Até lá, nosso descanso é na batalha.

Leonardo Padilha é advogado canabista, jornalista e especialista em educação.
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