O moralismo da morte

A questão das drogas costuma provocar no consciente coletivo uma mistura de preconceito, medo e até curiosidade. E não poderia ser diferente, já que nesse debate falta discernimento e sobra pretexto. Mas nem sempre foi assim. 

Até o começo do século XX, grosso modo, não havia leis penais acerca da proibição do uso ou comércio de entorpecentes. O consumo dessas substâncias era considerado algo comum, natural, integrante da vida social e privada dos cidadãos. Na Ásia usava-se o ópio. Na América Latina mascava-se folhas de coca e fumava-se a flor da maconha, esta também consumida na África. Na Europa e nos EUA, a cocaína em pó era bastante difundida, assim como derivados do ópio. Tudo isso além de tabaco e álcool, conhecidos desde muito nos quatro cantos do planeta.

Mas o que houve de lá pra cá? Quando começou a criminalização e violência que envolvem as drogas atualmente?

O proibicionismo como política pública internacional teve largada em 1909, durante a Conferência de Xangai, organizada depois de muita pressão dos Estados Unidos. Na ocasião, a delegação norte-americana, chefiada por Charles Brent, um bispo anglicano de grande prestígio no governo, pediu a proibição do comércio de ópio no mundo, com exceção daquele destinado ao uso médico e científico. Como tal intervenção em uma atividade comercial legítima e lucrativa nunca havia sido suscitada, os países participantes não chegaram a consenso.

Importante ressaltar que para o Bispo Brent, na opinião pessoal dele – sem embasamento médico ou científico -, drogas de qualquer tipo degenerariam o ser humano, transformando pessoas normais em indivíduos agressivos, depravados e criminosos. De acordo com ele, as drogas causariam a destruição e o caos social. Nota-se, portanto, que a convicção individual de apenas um influente moralista, religioso fundamentalista e conservador otimista iria, a partir de então, direcionar toda a política antidrogas no mundo.

A cruzada moral contra as drogas patrocinada pelos ianques estava apenas no início. Não satisfeitos com o resultado em Xangai, os norte-americanos encabeçaram a organização de novos encontros. O seguinte ocorreu em Haia, em 1911. Foi o próprio Bispo Brent quem conduziu os trabalhos. O máximo que conseguiu, contudo, foi a proibição do ópio e a regulamentação de outras drogas, como a cocaína e a morfina. Em 1912 e 1913 houve novas reuniões em Haia, nas quais ficou decidido que os países adotariam medidas de controle interno dos narcóticos.

Estava aberta a porta para os EUA criminalizarem as drogas dentro de seu próprio território. Curioso pensar que até aquele momento não havia a mencionada proibição, provavelmente por faltar força política ou apoio popular para tanto. Vale sempre lembrar que o uso de drogas era algo natural e tolerado, e ainda não havia uma visão criminal anuviando a questão. Por isso, para o governo conservador conseguir o suporte que precisava para a proibição, era preciso antes difamar e estigmatizar as drogas.

Assim, o ópio foi atrelado aos chineses que trabalhavam nas linhas férreas no sul dos EUA, sugerindo que após o uso os asiáticos se tornavam seres repugnantes e comedores de ratos. A cocaína e o álcool associados aos negros, substâncias que os transformavam em assassinos e estupradores. Vários boatos sobre crimes bárbaros praticados por negros sob o efeito de pó circulavam na imprensa, inclusive. Aos mexicanos, que após a quebra da bolsa em 1929 passaram a ser indesejados nos EUA devido à escassez de trabalho, foi relegada a maconha e seus efeitos “diabólicos”, que deixava o usuário altamente violento. Visão oposta à crítica que passaria a ser feita na década de 1960, de que os maconheiros são apáticos e preguiçosos. Para assustar ainda mais a classe média branca estadunidense, trataram de dar à erva um nome latino, marijuana.

No Brasil, que anda sempre a reboque do Tio Sam, tirando as especificidades locais, a proibição das drogas se deu da mesma maneira. Houve a maledicência das substâncias, atrelando-as a classes subalternas, revelando um forte viés racial no proibicionismo brasileiro também. A cannabis, por exemplo, foi chamada de “pito do pango” (expressão africana, ou seja, relativa a escravos), planta diabólica, fumo do capeta, dentre outros ultrajes. Os chamados “fumadores de maconha” eram apresentados como a escória da sociedade brasileira. Percebe-se ainda uma forma de controle das massas pobres e negras sobretudo pela repressão policial, já que a escravidão tinha sido abolida havia pouco tempo e os libertos precisavam ser contidos, sob risco de ameaça à estrutura socioeconômica vigente àquela época e que se mantém íntegra até hoje.

O resultado dessa campanha moralista é que, na década de 1930, praticamente todos entorpecentes foram criminalizados em grande parte do mundo. Obviamente proibiram as drogas produzidas in natura por países no hemisfério sul, notadamente nações pobres e subservientes, lembrando que as drogas sintéticas, fabricadas pela indústria farmacêutica europeia, ficaram de fora da legislação criminal, ainda que várias fossem mais potentes e perigosas que as naturais.

No Brasil, a proibição formal da maconha no âmbito federal se deu em 1932, mais ou menos à mesma época dos EUA. Mas não se pode afirmar que houve meramente uma importação legislativa, já que as décadas de 1930 e 1940 no Brasil foram voltadas para a normatização de comportamento. Naquele período, regimes autoritários estavam em alta no mundo (fascismo, nazismo, comunismo), para os quais o cidadão deveria ter uma conduta moral e física irretocável para a nação se desenvolver. A junção da disciplina como conduta cívica com a nova política internacional proibicionista preparou o terreno para o combate aos narcóticos no país.

Guerra às drogas que chegou avassaladora por aqui. Não contra as drogas, que nunca param de circular. Mas contra pessoas, vidas, as mesmas que a proibição visava proteger. As mortes que até então ocorriam eventualmente por abuso das substâncias, passaram a ser cena cotidiana, lavando com sangue principalmente as ruas e becos das comunidades menos favorecidas. Em 2017, houve 65.602 mortes decorrentes da guerra às drogas no Brasil, segundo o Atlas da Violência. No mundo foram 585 mil mortes no mesmo período.

Fica claro, portanto, que a criminalização das drogas aumentou a criminalidade violenta. O Estado policial, percebendo o fracasso, não retrocede. Ao contrário, aumenta a repressão. Antes o trabalho do policial era prender estuprador, ladrão e assassino. Agora passou a ser prender pessoas envolvidas numa relação comercial voluntária, a vasculhar bolsos e peças íntimas de concidadãos. 

Presídios lotaram, delegacias ficaram entupidas de flagrantes de poucos gramas de droga, varas criminais abarrotadas de processos que fatalmente terminam com o envio de vendedores para dividir cela com assassinos. O sistema de persecução penal brasileiro sofria ali seu mais duro golpe.

A legislação criminal brasileira é um exemplo do abismo a que pode nos levar a cruzada moral contra as drogas, intento imperialista dos EUA. Para se ter uma ideia, no Brasil a pena máxima para o crime de homicídio simples é de 20 anos. Para o roubo, que tem emprego de violência, 15 anos. O estupro com lesão corporal pode ser de no máximo 12 anos. Já o tráfico de drogas pode chegar a 25 anos. Uma transação comercial ter punição superior à de um assassinato é, no mínimo, uma aberração legislativa.

É nesse cenário que entende-se a guerra às drogas como uma irracionalidade que mata, encarcera, subjuga e controla. O discurso justificativo da causa não encontra eco no efeito. Antes disso, provoca muito mais dor e sofrimento do que geraria o uso legalizado de entorpecentes por uma parcela da população.

Por fim, o que se pretende com o discurso antiproibicionista não é o incentivo ao uso de drogas, mas a racionalização do problema. Antes da criminalização só havia as drogas. Agora existem as drogas, os crimes, as mortes, as prisões, as fraudes, a clandestinidade, a corrupção privada e estatal. 

É preciso acabar com essa tragédia. Como bem disse Eleanor Roosevelt, ironicamente ex-primeira-dama dos EUA, “ninguém ganhou a última guerra nem ninguém ganhará a próxima.”

Leonardo Padilha é advogado canabista, jornalista e especialista em educação.
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