Com quase oito bilhões de pessoas e mais de 510 milhões de quilômetros quadrados, existe quase tudo no nosso planeta. De gigantescas árvores com mais de cem metros de altura a minúsculos insetos com micrômetros de cumprimento, a natureza faz cada criatura com maravilhosa perfeição, apesar de tamanhas diferenças entre elas. Alguns espécimes, contudo, nascem deformados, corrompendo e desorganizando a estrutura natural e esperada. Para explicar tal circunstância a ciência usa o termo teratologia, que é estudo das anomalias e malformações congênitas dos seres. Um bezerro de duas cabeças e um cachorro com cinco patas, por exemplo, são indivíduos teratológicos.
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O direito, por sua vez, incorporou o verbete teratologia em suas práticas para qualificar decisão judicial que se mostre desarrazoada, arbitrária, gritantemente inconstitucional ou totalmente despropositada. Trata-se da conhecida e infame sentença teratológica, considerada uma aberração jurídica. Um juiz que condena alguém à prisão por consumo de drogas no Brasil, em caso hipotético, julga de forma anômala já que a lei brasileira não permite encarceramento por esse motivo.
As patologias teratológicas se iniciam antes do nascimento. Mas a maioria das doenças se desenvolve pós-parto, degenerando o indivíduo das formas mais dolorosas que se possa imaginar.
Prostrada em sua cama, a senhora Araci em nada mais lembra aquela renomada médica e professora universitária da Bahia que encantava a todos ao falar sobre a dimensão da vida e da saúde. Agora aos 64 anos, ela não sabe no que se formou nem onde trabalhou. Não se recorda que tem marido e filho, não reconhece o lugar em que se encontra. A compreensão desapareceu de seus olhos e não há mais vida em seus dias, mas apenas um arremedo de existência.
O calvário teve início em 2011, quando a senhora Araci começou a apresentar os primeiros sintomas de estar acometida por patologia severa. Dificuldade de pronunciar algumas palavras, crises nervosas e tremedeiras nas mãos foram os sinais mais visíveis a princípio. O primeiro médico arriscou um diagnóstico de múltiplas comorbidades, como ansiedade, bipolaridade e transtorno obsessivo compulsivo. Receitou diversos medicamentos e, por reduzido tempo, os sintomas amenizaram.
Mas a natureza é implacável e logo os sinais de doença degenerativa ficaram evidentes. Movimentos involuntários e tiques nervosos passaram a ser constantes, assim como as fortes crises de ansiedade e a intensa oscilação de humor. Apesar dos esforços, a paciente só fazia piorar. Gradativamente foi perdendo o autocuidado, a higiene pessoal ficou de lado, passou a se desorganizar e estar sempre à flor da pele, agindo de forma impulsiva, com humor cada vez mais instável e oscilante, indo de uma euforia enorme a uma irritação ou tristeza em segundos.
Sob acompanhamento, a senhora Araci fez uso das mais potentes drogas psiquiátricas, algumas usadas inclusive para controlar casos extremos de alucinações e loucura. Contudo, esse tipo de medicamento não passa incólume pelo organismo humano e logo a paciente externaria os efeitos colaterais. Corpo duro e travado, mãos trêmulas e languidez extrema, além de uma depressão sem fundo.
Quando já não havia mais medicamentos alopáticos disponíveis pela medicina para o caso da senhora Araci, um neurologista de forma titubeante indicou o eletrochoque como violenta e derradeira tentativa para se obter alguma melhora para aquela desmantelada e sofrida mulher. A família, entretanto, se recusava a permitir qualquer tratamento humilhante e traumático, mesmo quando as crises de agressividade e violência se intensificaram.
A senhora Araci já não podia autodeterminar-se, tornara-se uma pessoa totalmente dependente. Ela não mais entende que precisa fazer suas necessidades fisiológicas e sua higiene pessoal, precisando de auxílio para desempenhar tarefas mais básicas e íntimas. Como efeito da doença, ela frequentemente ataca quem tenta se aproximar e não segue voluntariamente qualquer orientação que lhe seja dada. Por ser paciente não colaborativa, é quase impossível encontrar cuidadores dispostos a trabalhar com ela. Assim, marido e filho precisam se ajudar e se proteger mutuamente para dar banho na mulher ou ajudá-la a ir ao banheiro, o que acontece algumas vezes por dia.
Passaram por mais meia dúzia de especialistas tradicionais, tendo o último orientado a internação em clínica especializada para tratar a agressividade e ministrar medicamentos específicos. Em bom português, o médico sugeria que a senhora Araci pudesse ser amarrada quando necessário e drogada de todas as formas mais violentas que a psiquiatra conhece. A família estava destruída.
A reconstrução começou de forma inesperada, quando o filho descobriu o óleo integral de maconha. Conheceram um médico prescritor, ajustaram a dosagem e a vida da senhora Araci mudou, assim como a do marido e filho. Apesar da inevitável perda de memória, a alegria e docilidade reapareceram na rotina da paciente. A paz e a harmonia fizeram novo ninho naquele lar.
A família passou a cultivar cannabis e produzir o remédio da senhora Araci de forma artesanal. A história foi levada ao Judiciário por meio de habeas corpus para legalizar o plantio doméstico que devolveu-lhes a dignidade. Caso de julgamento simples, em que qualquer magistrado reconheceria o direito necessário à saúde e à vida, não é?
Nem sempre. O juiz do presente caso, mesmo diante de todos os laudos médicos e histórico farmacológico da paciente, achou por bem negar a autorização. Para isso, asseverou que o cultivo é proibido pela Lei de Drogas, “não havendo que se falar em ilegalidade ou abuso de poder em eventual conduta repressiva pela polícia judiciária”, espezinhou o julgador. Disse ainda que ele, como magistrado, não tem autonomia para decidir sobre procedimentos adotados pela ANVISA, órgão técnico competente para análise da questão, de acordo com o julgador. Por conveniência ou fraqueza, esqueceu-se do dispositivo constitucional garantidor que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, justamente a norma que dá aos juízes poderes quase ilimitados.
Mas direito sem limite é arbítrio. Quando a autoridade extrapola por ação ou omissão a fronteira da sua competência, de forma dissimulada, temos o desvio de poder. Quando tal subversão se dá em uma decisão judicial sem pé nem cabeça, temos uma sentença abusiva e teratológica, já que nossa Constituição garante de forma peremptória o direito à saúde e à vida.
Teratológica nesse caso porque a deformação começou antes do nascimento da sentença. Teve início dentro da casa do juiz, que provavelmente ouviu dos pais que maconha é droga de vagabundo. Certamente viu na TV que drogas destroem famílias e causam muita violência. Absorveu do senso coletivo que entorpecentes não devem ser relativizados, mas exterminados. E hoje acredita que cannabis medicinal é um engodo para liberar a droga e deixá-la à vontade dos viciados.
É claro que nenhum desses argumentos resiste a cinco minutos de informações embasadas, assim como uma sentença disparatada é demolida no recurso ao Tribunal. Impossível, no entanto, não reflexionar sobre o destino dos pacientes. Muitos ficam à mercê de julgadores que podem, apenas por convicções próprias e infundadas, relegar um cidadão à marginalidade, ainda que seu crime seja produzir seu próprio remédio.
O único caminho para evitar injustiças relativas a substâncias entorpecentes, ao que tudo indica, é a descriminalização total ou a legalização. Enquanto isso não ocorre no Brasil, famílias como a da senhora Araci continuarão sendo subjugadas por autoridades que deveriam protegê-las.
Condutas como a do mencionado juiz não são a regra, felizmente. Boa parte dos magistrados tem autorizado o cultivo individual para fins medicinais. Espera-se neste momento que o Poder Judiciário se equilibre e pacifique a concessão de habeas corpus para pacientes devidamente documentados.
O sistema, assim como tal, se aperfeiçoa por sua essência coletiva. Individualmente, o homem que não sabe controlar-se a si mesmo torna-se bizarro quando quer controlar os outros. Transforma-se num imprestável ser teratológico.
* Araci é um fictício, usado para preservar a intimidade da paciente.
Leonardo Padilha é advogado canabista, jornalista e especialista em educação.
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