Desde sempre autores recorrem a representações para sugerir ou explicar situações da vida. Das alegorias de Platão até os roteiros hollywoodianos, passando pelas parábolas de Jesus, enredos e personagens fictícios são criados para simbolizar uma história que poderia ser verídica, mas não é. Para entender a crueldade da guerra às drogas, no entanto, há de se tratar com a verdade. Por isso, a partir de agora será contada a história real de um czar e de uma rainha, que ilustra de forma cristalina a tragédia social provocada pelo proibicionismo.

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Quando Harry Aslinger nasceu no estado da Pensilvânia, em 1892, as drogas eram comercializadas livremente nas ruas e farmácias dos EUA, assim como em todo o mundo. Notório racista, homofóbico e misógino, desde novo se incumbiu de ser o homem que salvaria a humanidade da suposta degeneração causada pelos entorpecentes. Ao crescer, aquele menino se beneficiaria de profundos temores da sociedade branca estadunidense, como o medo das minorias raciais e da perda de controle para encabeçar a sua cruzada pessoal e moralista. Se fosse possível abrir uma vala comum para lançar todos os milhões de mortos pela repressão policial às drogas, o local mais adequado para a cova seria o quintal de Aslinger.

Dizem que demônio é mais diabólico quando é respeitável. Com Harry não foi diferente. Em 1930, cerca de uma década depois das primeiras proibições, foi designado diretor do Departamento Federal de Narcóticos. A perseguição contra vendedores e consumidores de drogas passou a ser conduzida com os máximos esforços e investimentos, e logo Aslinger ganhou o epíteto de Czar das Drogas.

Quando Harry Aslinger ganhou fama e poder, Billie Holiday ainda não havia nascido. A hora dela aconteceu alguns meses depois, em 1915, na cidade da Filadélfia, na Pensilvânia. Após o nascimento, sua mãe começou a se prostituir e seu pai desapareceu. Billie então se viu sozinha e acabou perambulando pelas ruas de Baltimore, onde aprendeu que não poderia ir a muitos lugares porque era negra.

Mas há locais que mulheres jovens de qualquer cor sempre podem frequentar e Billie foi parar num bordel aos seis anos de idade. Ali ela passou a ajudar na limpeza e serviços gerais, e nas horas de descanso estirava-se no chão a ouvir um som inefável que lhe enchia a alma. Assim a música arrebatou-lhe de vez. Mesmo depois de estuprada, prostituída e viciada, Lady Day ainda exibiria talento suficiente e voz insuperável para auferir o virtuoso cognome de Rainha do Jazz

Menos por causa do uso de narcóticos e mais por sua música e sua cor, Billie seria tragada e consumida pela guerra às drogas.

O frenesi da música de jazz devia causar incompreensão e tremedeira em Harry Aslinger. O som improvisado e fora do padrão, sem compromisso com o clássico, era nada mais que uma anarquia sonora aos ouvidos conservadores dele. Com a efervescência do estilo musical nos EUA na década de 1930, o radar do Departamento Federal de Narcóticos, chefiado por Aslinger, se voltou ferozmente contra os jazzistas, ansiando colocar todos atrás das grades.

Com efeito, Harry organizou uma grande operação nacional para prender num único dia todos os músicos de jazz do país que violassem a lei da maconha e outras drogas. Qualquer ponta de baseado achada no chão ou a mera denúncia do consumo seria suficiente para enjaular por tempo indefinido nomes como Louis Armstrong e Charles Parkes.

O ardiloso Aslinger, contudo, não contava com a intrépida solidariedade entre os jazzistas. Durante o ataque geral e coordenado, músicos presos se recusavam a denunciar colegas, e todos se uniam para pagar a fiança do detido. Percebendo que a classe não se dividiria, Harry decidiu investir contra um único alvo – a maior cantora de jazz de todos os tempos. Ele passou a observar cada passo que Billie Holiday dava.

Ciente dos boatos de que aquela cantora negra em ascensão usava heroína, Aslinger resolveu armar um flagrante para ela. Tal estratégia é rechaçada pelo direito penal civilizado, pois ao mesmo tempo em que o provocador leva o provocado ao cometimento do delito, age em sentido oposto para evitar o resultado. Dessa forma, não há consumação do crime. Ainda assim, a política repressiva de Harry encarcerou milhares sob o flagrante forjado. E ele estava firme no propósito de fazer o mesmo com Lady Day.

Para isso, contratou um homem chamado Jimmy Fletcher. Racista fervoroso, Aslinger detestava trabalhar com negros, mas viu em Fletcher um ótimo meio para chegar a Billie Holiday. Afirmando a outros colegas que em seu departamento um negro jamais seria chefe de um branco, Harry deu a ordem para que Jimmy se infiltrasse na vida da cantora. O agente tinha permissão para carregar grande quantidade de drogas, que seriam usadas para ganhar a confiança das pessoas que em seguida incriminaria. Foi justamente Fletcher o responsável pela primeira prisão de Billie.

A obsessão de Aslinger não deixaria Lady Day em paz. Constantemente perseguida por agentes policiais, ela foi presa novamente e levada a julgamento. Surgiu diante do juiz pálida e desorientada. Disse ao magistrado que não queria benesses, mas apenas ser enviada a uma clínica para se tratar do vício. Em vez disso, foi condenada a um ano de prisão e forçada a trabalhar num chiqueiro.

Como efeito da condenação, Billie Holiday perdeu a licença de cantora de cabaré, sob o argumento de que sua música poderia ferir a moral do público. Tendo superado estupros, injustiças e vícios até então, o golpe agora era duro demais e ela sucumbiu. Lady Day finalmente fora silenciada. Não tinha mais condições de pagar um aluguel ou se alimentar. Ela começou a se distanciar até dos amigos, acreditando que por sua causa eles também poderiam ser vítimas da violenta perseguição.

Chegou aos ouvidos seletivos de Harry Aslinger que havia outras divas – mulheres brancas – envolvidas com drogas. Foi o caso da atriz Judy Garland, viciada em heroína. Aslinger chamou-a em seu gabinete. Tiveram uma boa conversa e o czar das drogas orientou a beldade a tirar férias mais longas entre os filmes, bem como emitiu ofício ao estúdio em que a moça trabalhava garantindo que ela não estava envolvida com entorpecentes. Com a mesma empatia e altruísmo incomum, se recusou a prender uma jovem viciada de alta classe porque “isso destruiria a reputação de uma das melhores famílias do país.”

Não é necessária uma profunda reflexão para perceber que a violência dirigia contra Billie Holiday e a benevolência em favor de mulheres brancas não são um defeito do sistema repressivo instituído por Aslinger, mas sua finalidade predominante.

Lady Day ainda foi presa mais uma vez por agentes de Aslinger, numa operação cheia de suspeitas e lacunas. Investigações posteriores apontaram que a droga foi plantada no quarto da cantora,  levada a julgamento. Por sorte, Billie foi absolvida pelos jurados, que se compadeceram com a história, mas a carreira dela estava acabada.

Aos 44 anos e com a saúde debilitada, Lady Day foi internada num hospital de Nova York. Os médicos disseram que ela não viveria muito tempo, mas Aslinger não estava satisfeito e mandou uma equipe até o local. Os agentes disseram ter encontrado dentro do quarto hospitalar dois gramas de heroína em um lugar que Billie sequer conseguia acessar de onde repousava.

Algemaram-na na cama e fizeram a segurança da porta. Ninguém podia entrar para visitar a cantora. Fãs e especialistas ofereceram a Billie tratamento em clínicas de reabilitação, mas Harry recusou todos os pedidos, deixando-a presa sem identificação e sem advogado.

Pouco depois, Lady Day morreu na cama daquele hospital, com policiais na porta do quarto. O ano era 1959 e havia 750 dólares presos em sua perna. Billie queria dar o dinheiro às enfermeiras que cuidaram dela.

Duas décadas antes Billie Holiday subia ao palco, o rosto iluminado e os cabelos presos, para cantar a canção que se tornaria um símbolo da luta da sua raça, Strange Fruit

Southern trees bear a strange fruit,

Blood on the leaves e blood on the roots.

Os corpos de negros, pendurados como frutos nas árvores do sul escravagista norte-americano, já não são mais vistos por lá, eles não podem mais ser enforcados. Mas passaram a ser segregados em celas, sufocados pela superlotação e executados em ações policiais sob o pretexto da guerra às drogas.

Agora há frutos estranhos, com sangue nas folhas e sangue na raiz, por todo lado.

Leonardo Padilha é advogado canabista, jornalista e especialista em educação.
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