Aos 85 anos José “Pepe” Mujica anunciou sua retirada definitiva da política para cuidar da saúde. Admirado pela esquerda e respeitado pela direita, Mujica fez de sua vida um combate permanente contra as injustiças. Entre todo seu legado em prol dos direitos humanos, deverá entrar para a história como o governante do primeiro país a legalizar e democratizar o consumo de maconha.

O estridente guincho dos ratos era o som mais ouvido por Pepe Mujica durante seus doze anos cativo no buraco em que foi lançado pela ditadura uruguaia, nos arredores de Montevidéu, em 1973. Além do ruído dos roedores e das baratas, ele ouvia apenas as ofensas e ameaças dos guardas sentinelas.

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Mujica chegara ali depois de receber seis tiros da polícia repressiva, que o perseguia pela militância no grupo Tupamaros, uma “guerrilha Robin Hood”, como ficaram conhecidos. Tomavam de assalto caminhões de comida destinada aos ricos e distribuíam a carga nos bairros mais carentes. Por seu espírito revolucionário foi jogado naquela masmorra, de onde só saiu ao cabo do regime de chumbo, em 1985. Naquele momento, sentiu-se mais forte e determinado do que nunca para continuar lutando por justiça social.

Não por acaso, 24 anos depois foi eleito presidente do Uruguai. Antes da posse, anunciou que não se mudaria para o Palácio Presidencial, mas continuaria vivendo com a esposa na pequena propriedade que possuem na periferia da capital. Confirmou a doação de 90% do seu salário aos necessitados, restando-lhe o equivalente a 775 dólares por mês para sustentar a casa e a família. Abriu mão do avião da presidência e usou o dinheiro para comprar um helicóptero que serve de ambulância aérea, posicionado num ponto central do país, de modo a atender com agilidade e equidade cidadãos de qualquer região.

A preocupação com a vida das pessoas levou Pepe Mujica a tomar uma decisão que faria os olhos do mundo se voltarem para o Uruguai. Ele prestava bastante atenção ao que ocorria em outros países da América Latina, já dominados e estragados por cartéis de drogas. O norte do México e a Colômbia eram considerados uns dos lugares mais violentos do planeta, com uma rotina de mortes superior à de zonas de guerra declarada. Os traficantes também controlavam boa parte do Paraguai e o avanço sobre o Uruguai, um país com área menor do que o estado do Paraná, era questão de tempo.

Como todas as pessoas que se dedicam ao estudo do proibicionismo, Mujica logo compreendeu que a política repressiva é um desastre que causa muita dor e sofrimento a um custo enorme para muito pouco ou nenhum resultado positivo. Aprendeu que quando as drogas são legalizadas os cartéis vão à falência, as mortes por overdose diminuem, o sistema carcerário desincha, a corrupção encolhe. Decidiu, em nome do seu povo, começar o processo de legalização a partir da cannabis, esperando que todas as drogas pudessem ser regulamentadas ao longo do tempo.

“Não é bonito legalizar a maconha, mas pior é dar pessoas ao narcotráfico. O único vício saudável é o amor”, garantiu Pepe com razão. Isso porque a descriminalização, como fez Portugal em 2001, deixa de punir a posse e o consumo, mas continua proibindo a produção e a comercialização. Dessa forma os usuários ficam protegidos, mas o tráfico persevera. Sabendo disso, Mujica mirou a legalização, de modo que a erva pudesse ser produto de mercado lucrativo e tributável, golpeando de morte os traficantes.

Enquanto a mente dos tolos é cheia de certezas, no entendimento dos sábios sobram dúvidas. Com efeito, Mujica não tinha garantias de que a nova política funcionaria. “Se dará resultados? Não sabemos. O que sabemos é que o método clássico não está dando resultados”, deduziu à época.

O processo político foi polêmico mas vitorioso, e a legalização no Uruguai entrou em vigor a partir de 2014. Seis anos depois, os resultados da experiência são ambíguos.

Por um lado, estimativas oficiais indicam que, em dois anos de comércio legal, a regulamentação da cannabis para fins recreativos lucrou mais de US $ 22 milhões (cerca de R$ 124 milhões) que iriam para o mercado ilegal, mas o tráfico não desapareceu. A polícia uruguaia apreendeu em 2019 mais de duas toneladas de drogas diversas, com uma clara prevalência de maconha. Uma das razões para explicar isso é o fato de o Estado ainda não conseguir suprir a demanda, sendo poucos os estabelecimentos licenciados para o comércio da planta. Essa tese é corroborada por uma pesquisa governamental revelando que apenas um em cada três consumidores no Uruguai obteve maconha no mercado regulamentado no ano passado. Demais disso, usuários também reclamam da qualidade da erva estatal.

Até o fim de 2019 havia 38.771 pessoas habilitadas a comprar nas farmácias, 7.922 autocultivadores legais e 4.246 sócios de clubes canábicos. Os menores de idade não são autorizados a consumir a maconha regulada, mas a legalização da droga gerou muita preocupação sobre o comportamento dos adolescentes. Segundo um estudo oficial, o consumo dos menores de idade se estabilizou nos últimos anos. Os dados apresentados pelo governo indicam ainda um aumento no número de pessoas que consumiram maconha pelo menos uma vez: de 9,3% em 2014 para 14,6% em 2018.

Por outro lado, houve queda nos delitos relacionados às drogas. Os homicídios, entretanto, aumentaram, subindo 35% entre 2017 e 2018. Mas pesquisadores acreditam que os usuários de maconha estão mais seguros e consumindo um produto melhor, enquanto traficantes continuam se matando na disputa pelo mercado clandestino das demais drogas. Para eles, essa seria a causa da maioria das mortes.

“Custa muito mudar. Não será mágico”, disse Mujica em entrevista recente. Mas ele sabe que, apesar dos obstáculos e incertezas, a proibição é uma medida muito mais extrema do que a legalização. O caminho inverso certamente será bem menos sofrido e sanguinolento. O bom e velho Pepe aprendeu da pior maneira que o autoritarismo e a repressão atroz não são antídotos para mal nenhum. Pelo contrário, são o veneno que levou à beira da morte diversas nações, inclusive a sua própria.

Se a coragem e a justeza de José Mujica foram lapidadas nos anos de cárcere, só ele sabe. Como o suplício físico e psicológico do isolamento influenciaram sua vida e sua visão política, talvez nem Pepe compreenda. Mas qualquer um é capaz de concluir que as inúmeras torturas cruéis a que foi submetido causaram-lhe menos dor do que ver seu irmãos de solo e de coração matarem e serem mortos e presos em nome de uma guerra descabida.

A essência abnegada de Mujica não o permite considerar-se um paladino da luta antiproibicionista. Mas como todo grande herói, o primeiro passo da sua jornada foi vencer o medo.

Leonardo Padilha é advogado canabista, jornalista e especialista em educação.
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